“Despertar em Itapuã” é a primeira coleção de estampas desenvolvida através de “narrativas de mulheres negras em Itapuã”, projeto final de graduação apresentado por mim -sofia lima (idealizadora do atelier fim-fim), na tentativa de começar mais um acervo ilustrado, para superfícies múltiplas, que falem sobre a história preta de salvador- principalmente sobre o olhar e vivência das mulheres. E digo isto pois já temos na cidade alguns artistas e designers mais velhos que eu que estão nesta caminhada desde muito tempo, criando sobre nós! Principalmente durante o carnaval através dos blocos afros.
A forma de saber o que aconteceu no passado e no presente da população negra brasileira a partir da literatura, de relatos orais, de outras maneiras para além da escrita, trazendo esses estudos para dentro do ambiente acadêmico, têm sido uma das tentativas de nos colocar como seres de referência e importância também para a formação das cidades e levar essas pesquisas e projetos para fora da academia é um movimento de democratização e expansão do conhecimento adquirido.
O estudo iconográfico e a produção de novas iconografias, para entender o passado e também pensar os futuros possíveis têm sido formas de disputar as produções sobre a cidade e sobre a nossa história. Entendendo as necessidades de representações, que levem como referência o imaginário negro.
Reescrever a nossa história a partir de nossas memórias é um modo de reparação e de luta. Ana Maria Gonçalves, em uma fala sua sobre o seu processo de escrita de “Um defeito de cor” (2006), contesta a frase “brasileiro não lê” com o argumento de que “ele não encontra histórias que falem com ele, que falem dele, que falem de um mundo com o qual ele se identifica”.
Com isto, este trabalho vai partir de mim e de outras mulheres negras com quem tive contato, nesse sentido de falar de nós para nós. Para guardar na memória. Essa memória que tem sido o lugar onde estamos tentando acessar e criar o tempo inteiro.
Uma vez ouvi que “(...) os yorùbá não reverenciam a memória, mas a produção de memórias” de Diego Araúja e isso se dá pela relação de seus “familiares com a memória além de elementos performativos que estão em nossa cultura afro-brasileira também”, algo que se conecta com o que alguns outros artistas têm levantado em suas produções. As obras de artistas negros contemporâneos têm se relacionado com essa necessidade de criar a partir da memória, “criar seria lembrar. Um retorno ao futuro”(PINHEIRO, 2017). Como a história afrodiáspórica é toda contada em fragmentos então “incorporar o não narrado, os buracos que se formaram em anos de borracha, faz parte da empreitada afrofuturista de criar outras possibilidades históricas” (FREITAS, 2015, p.4)
Comecei essa pesquisa lá em 2018 sobre a ancestralidade que carregamos nos nossos corpos negros, na dança e no pagode. Acreditava que nada era mais a representação de Salvador do que um paredão. E nada mais popular do que pagode.
Assim segui tentando entender Salvador a partir de "articulações de futuros, na produção da cidade, com as formas cotidianas e predominantes da expressão popular negra” , sendo este tema retirado de um catálogo da exposição Afrofuturismo. Esta exposição aconteceu em 2015, na Caixa Cultural de São Paulo, e era um panorama criado para debater sobre o cinema, a música e as produções literárias afrodiaspóricas que buscavam e buscam utilizar a ficção científica como meio para produzir memória sobre a diáspora negra, o passado, o presente e o futuro.
Neste sentido, Salvador para mim é uma cidade que consegue conectar tempos, como a literatura de Octavia Butler, com as tecnologias ancestrais que só são possíveis de serem transmitidas pelo corpo negro.
O local escolhido como ponto de partida foi o meu corpo, a partir de minhas memórias ancestrais, das pessoas mais velhas como minha mãe, minha avó, tias que me conectariam com o meu passado e ai o caminho que era para chegar no pagode acabou seguindo para a vida de mulheres e suas memórias.
Justificando o acesso ao conhecimento pelas conexões de parentesco, e tendo Rosana Paulino como referência, com a parede da memória, como as nossas paredes são locais de reconexão com o saber. E por isso o local na cidade que desenvolvi o trabalho foi Itapuã, onde minha avó morava e boa parte das mulheres da minha família. Lá no bairro, minha avó seria a ponta da constelação de mulheres e relações que me levaram a entender o que acontece atualmente em Itapuã e como se deu a sua formação. Assim eu começo a pesquisar esse bairro-pedra conhecido por ser cantado em verso e prosa por Vinícius e Caymmi e pela dualidade dessa poética bucólica com o “descaso da população” e do poder público. Mas é a partir da narrativas de mulheres negras que busquei conhecer este bairro, saindo da perspectiva já dada e conhecida por todos.
E na verdade, este já tem sido um trabalho delas próprias, moradoras de lá, mostrar uma Itapuã através de suas vivências, canções, trabalho e arte.
E na verdade, este já tem sido um trabalho delas próprias, moradoras de lá, mostrar uma Itapuã através de suas vivências, canções, trabalho e arte.
O trabalho originalmente foi dividido em 3 partes e essas três atualmente se transformaram em quatro eixos
O que antes era "corpo, casa da memória", "casa, corpo da memória" e a "rua" se tornam referência para os eixos que a coleção é dividida: amor, as referências, a cidade e o sagrado.
As estampas passam pelos eixos através de desenhos que representem os modos que as mulheres de Itapuã habitam e habitaram o bairro. Com padrões e adaptações de costumes, modos de viver, religiosidade e afetos em suas memórias, em seus corpos - quando nos consideramos arquivos vivos. Então o corpo, casa da memória e a casa, corpo da memória são a direção para o desenvolvimento das estampas que falam sobre o amor e as referências.
"Para entender como bate o coração de uma mulher" - de Alessandra Leão, é a música que desenha a primeira estampa localizada da coleção. "Pássaros, mulheres e peixes" é a música que interpreto para iniciar as representações de amor e o amor que represento começo por minha avó mas vai também falar sobre o auto amor, o auto cuidado no sentindo de tentar entender como bate o coração desta mulher que já foi menina, que tem referências e ancestrais e que reproduz estes costumes e modo de viver a vida, a casa a cidade.
A segunda estampa de amor é a correnteza de canções, com algumas músicas que minha avó Noélia fez para alguns netos. Todo neto que nascia tinha música composto, o Abaeté teve música também. e é com a música que minha avó demonstrava seu amor por nós de forma mais explícita e é com a música que também as ganhadeiras lavaram as roupas na lagoa do Abaeté e foi na lagoa onde elas também construíram essa rede de afetos.
E é por isso que o amor e a referência se aproximam e se confundem, quando colocamos as nossas mais velhas, que tanto amamos, neste lugar de referência para a própria vida. E assim nasce a estampa rede de afetos.
E agora o que foi a casa, tem nome de referência. Casa, corpo da memória é o momento de falar sobreo papel das mulheres nas casas e como elas acabam sendo a figura principal das famílias. Entendendo como elas foram capazes de manter o modo de viver em família com base nessa memória ancestral trazida de África. Como elas são o início de uma rede de proteção e afetos, como suas casas são ponto de referência e o poder que elas têm dentro de uma família, mesmo tendo homens provedores e mesmo em uma sociedade patriarcal. Um mundo de referências e um mundo de mulheres se tornando referência.
As estampas desenvolvidas neste eixo são "cada cabeça é um mundo" e "constelação de referências" e falam sobre este infinitos universos de mulheres que fizeram parte de alguma forma deste projeto lá em 2019. Uma explicação especial sobre "cada cabeça é um mundo" é que esta frase é conhecida em salvador através de muitas músicas, inclusive é um álbum de Timbalada, mas essa estampa saiu da minha primeira referência que me fez pesquisar sobre corpo, cidade, movimento ... que foi o pagode baiano e uma música de Parangolé que tem o trecho: cada cabeça é cada um e cada um canta seu mundo. Esta coleção é sobre esse meu mundo desbravado em Itapuã.
A rua aqui se estende para a cidade mas ela começa pela casa/amor/referências. A rua é o lugar onde as relações são criadas, os sambas acontecem e o trabalho também. Onde as trocas, onde a casa se estende e o corpo se relaciona com o outro carregado de informações afetivas e ancestrais passadas por gerações. A rua como o lugar de produção de uma história comum entre todas essas mulheres que tive contato (e suas outras conexões). Aqui a rua aparece com o local de produzir a cidade e de viver experiências em comunidade. Onde vai aparecer a lagoa, o samba de roda, a porta da casa e também onde as disputas vão ser colocadas.
Neste eixo desenho as ganhadeiras, o samba, o coentro e a folha que cura. É na rua que encontramos tudo. Foi na rua que elas trabalharam, caminharam e foi na lagoa do Abaeté que elas firmavam laços e lavavam roupas e é a mesma lagoa que as mais jovens escutaram sobre a cobra do tamanho da lagoa e que fazem todas crescerem com essa lembrança dos cuidados ao adentrar neste espaço que também é sagrado.
É também na rua que as baianas lavam as escadas da igreja e a lavagem de Itapuã acontece, onde acontece o samba e outras manifestações culturais. É na rua que o sagrado e o profano coexistem.
Neste eixo desenho as ganhadeiras, o samba, o coentro e a folha que cura. É na rua que encontramos tudo. Foi na rua que elas trabalharam, caminharam e foi na lagoa do Abaeté que elas firmavam laços e lavavam roupas e é a mesma lagoa que as mais jovens escutaram sobre a cobra do tamanho da lagoa e que fazem todas crescerem com essa lembrança dos cuidados ao adentrar neste espaço que também é sagrado.
É também na rua que as baianas lavam as escadas da igreja e a lavagem de Itapuã acontece, onde acontece o samba e outras manifestações culturais. É na rua que o sagrado e o profano coexistem.
O sagrado e o profano em Salvador se relacionar o tempo inteiro na cidade e em Itapuã não seria diferente. A estampa principal deste eixo, é filha das água e ela faz relação com o branco total da sexta-feira que todos usamos em respeito a Oxalá.
Na festa de largo começamos o dia, ou a madrugada, cuidando do nosso sagrado, nas limpezas sagradas e ao longo do dia a calmaria da parte religiosa vai dando vez a festa do profano. E a estampa que fecha esse ciclo de desenhos sobre as mulheres de Itapuã representa também esse ciclo das filhas das águas (seja ela doce ou salgada) nas profundezas de seu sagrado à expansão na sua festa.
Na festa de largo começamos o dia, ou a madrugada, cuidando do nosso sagrado, nas limpezas sagradas e ao longo do dia a calmaria da parte religiosa vai dando vez a festa do profano. E a estampa que fecha esse ciclo de desenhos sobre as mulheres de Itapuã representa também esse ciclo das filhas das águas (seja ela doce ou salgada) nas profundezas de seu sagrado à expansão na sua festa.
Itapuã é bairro de festa o tempo todo, mas é local sagrado também. É agito de metrópole e calmaria do veraneio, o tempo em Itapuã é outro, acelerado e calmo ao mesmo tempo. A coleção despertar em Itapuã é uma tentativa de resgatar e deixar no mundo as memórias de infância, de adolescência e os aprendizados da fase adulta. É sobre quem chegou antes de mim e deixou a marca nesse mundo, ou nesse meu mundo que estou cantando (ref de parangolé mais uma vez). É memória para deixar registrada e memórias para pensar em criar. Despertar é o começo, a renovação, é acordar para a vida e só podia ser primeiro por Itapuã, no tempo dela, no tempo das águas que preenchem aquele bairro.
é possível ver toda a pesquisa realizada clicando neste olho.